SENTIDOS

Diz-me segredos,
Diz-me mentiras,
Chora comigo,
Ama-me até ao fim.
 
Somos luz e verdade,
Somos loucura e viver,
Lágrimas soltas e dor,
Ou talvez nem assim.
 
Lê-me o livro de ontem
Onde te conto, amanhã,
Como queria fugir
E não consegui.
 
Deixa-me só, num instante,
Recorda o que nunca senti,
Esse fundo de cofre,
Esse tesouro de mim.

O DIA

O banco verde espera por mim,

Olho para diante. Vejo uma nuvem.

E um céu opressor que rói o ser,

Não há.

A voz que canta vinda das trevas,

Banda sonora do sofrimento,

Terapia para a ausência.

Depois o carro, e a fuga.

O sol que não brilha nem aquece.

O regresso.

LITURGIA

 

As pessoas entram e ocupam a sala,

Espalham-se pelo corredor como quem busca alimento,

E de repente, tudo parece imóvel.

De copo na mão se enche o luar.

De alma vazia se espera fermento.

Não posso. Não sei.

Como se faz e diz o amor?

AMANHÃ

De hoje a amanhã,

Com pés agrilhoados, e suor nas têmporas,

Com voz embargada, e temor na alma,

De hoje a amanhã,

Um monte de esperança,

Um faixo de luz.

A terra queimada num golpe de sorte.


FANTASMAS

A dança da noite traz rebuliço à aldeia,

As moças solteiras em véus de veludo,

Não vou.

Hoje é o dia de brindar aos que recusam.

É dia de saudar os outros que saem

Dali como quem vai e volta num instante,

Como quem não sabe o caminho.

Nunca iria.

O sol só brilha após a jornada,

E nega o calor aos fiéis deserdados.

Não chego. 

MORRER POR MORRER


Morrer como uma tartaruga,
Quando essa morte nos embala,
Liberta o odor que nos conjuga,
Remói o pensamento que não fala,
Alimenta o deus que vai em fuga,
Vestido com roupa que se enxuga,
Deixando o medo pela sala,

E quando esse dia chegar,
Já não o iremos entreter,
Sem ninguém para amparar,
Com as vontades a sofrer,
E os louvores a celebrar,
Ou os padrões para manter.

Cá estaremos, pois,
Mais gente ou só os dois,

A ESPERA


À espera por nada.
À espera por tudo.
Como se o náufrago ouvisse a braçada.
Como se a voz soasse do mudo.
À espera de tudo.
À espera de nada.
Notando bem longe um rosto miúdo.  
Sentindo de perto a tristeza causada.
À espera do nada.
À espera do tudo.
Deixando a alma por vezes estafada.
Mantendo o corpo por vezes desnudo.
À espera com tudo.
À espera sem nada.
Olhando com dor e jeito sisudo,
Para uma morte há muito já esperada.

TU, MULHER

Podes ser mãe,
e nos teus braços um baloiço de vida.
Podes ser filha,
e nos teus olhos uma eterna frescura.
Podes ser irmã,
e na tua mão um caminho e uma partilha.
Podes ser amante,
e no teu corpo o calor que aquece e ama.
Podes ser amiga,
e no teu apoio a palavra que serena.
Podes ser colega,
e dar cor aos dias mais cinzentos.
Podes somente existir,
e ser, generosa, a janela do mundo.
Podes ser tudo e ainda mais,
Flor, jardim, amor,
Senso, dúvida, fantasia,
Dor, alma ou fervor.
E podes até ser poesia.

O SALÃO

À entrada toca o sino,
Depois também uma corneta,
Há balões, e um dançarino,
Ainda um homem de jaqueta.

Tudo segue o seu caminho,
E parece ir a preceito,
Nem a água nem o vinho,
Nada aqui há de suspeito.

Só lá dentro a ilusão,
Quanta dor e sofrimento,
Amargura e escuridão,
Que tudo o resto leva o vento.

Ao poeta há que dizer,
Como o alegre ao coitadinho,
Tu nasceste para perder,
Mas não vais perder sozinho. 

SONS

São sons,
Sons que se ouvem lá fora,
Que choram como os mártires,
Que lutam como soldados.

São sons,
Sons que vibram como cristais,
Que ensurdecem os demais,
Que cantam tons abafados.

São sons,
Sons de conversa acabada,
De música desafinada,
De letras já sem sentido.

São sons,
Sons de disco riscado,
Talvez de poeta castrado,
E de coração assaz dorido.

CAMINHO

A dor pode esperar, enfim uma vez,
À segunda não é a brincar,
O que dói quando chega a três,
E é tarde de mais para parar.

Passando a mais logo, onde tudo ficou,
Quebrada a demência do ser verdejante,
Tão verde era ele que a cor desbotou,
Mais verde pareceu quando se viu por diante.  

Deitadas ao mar as armas pesadas,
Consumidas as fichas do longo casino,
O jogador lembra as palavras caladas,
Seja assim o azar, seja assim o destino.

O DEPOIS

As portas fechadas, os sonhos perdidos,
Um amanhã esgotado, um hoje ilusório
O corpo vendido, em prol dos sentidos,
A idade vivida em tons de velório.

O tempo que passa, sem ver o caminho,
A chuva de orgulho, um tanto doente,
A gente que segue e deixa sozinho,
Um doce sentir, que sorri e que mente.

Semente do nada, e a tudo pertence,
Na voz da enxada que uma seara corta,
E apura o sabor do pão que convence,
A boca faminta de uma alma já morta.

ATÉ À MORTE

Bandeiras bailam com o vento,
Em longas bancadas sem fim.
Cúmplice, a relva chama o olhar.
E recebe os soldados no momento,
De uma guerra sem mártires que assim,
Em vez de fazer morrer faz amar.

As faces enchem-se de ansiedade.
As almas, de uma fé contagiante.
As vozes condensam num só grito,
Os ecos de uma indómita vontade,
E de um delírio deveras contrastante,
Com quem nos roga conflito.

Um tórrido calor no coração.
Nas mãos, a humidade agreste.
Mais do que a vida, mais do que a morte.
Tal a força desta paixão,
Ou da glória que a angústia veste.
Rasga-se o fado, e reza-se a sorte.

Começa o jogo. Há um apito.
Não. Não é jogo, que isto é dança!
Cor de sangue, cor de luta, cor de gente,
Guiado por uma sede de infinito,
Sobre o tapete verde da esperança,
Um vermelho vivo e ardente.

E quando a rede balança, rendida,
Quando o povo perde a lucidez,
Será golo, será poema, será mito?
Abraça-se a família reunida,
Querendo repetir mais uma vez,
O sabor do seu prato favorito.

Hora e meia voa, terminada.
Após louca e cega comoção,
Foi-se o sofrimento que flagela.
E com orgulho na grandeza legada,
Devolvidos ao mundo da razão.
Ganhámos! A vida é bela.

Ninguém tolhe este sentimento vespertino.
Este lacrimejar doce e brilhante,
Que não deixa contentar-nos de contentes,
Que nos prende por escolha a um destino,
Forte, firme, nobre e vibrante.
O de servirmos a ti, que sempre vences.

Sem ostentação fútil de vaidade,
Depois de ter a lua, somos gente.
Gente bem mais densa e bem mais forte.
Voltaremos, muitas vezes, na verdade,
A amar-te assim perdidamente,
Sempre, e sempre, e sempre, até à morte

FICA

O teu olhar sufoca,
Como um raio de luz penetrante
Como uma arma disparada
Que me deita ao chão e mata
Que me põe sem fulgor

Deixa-te ficar neste momento
Para sempre e sem mais nada
Com o tempo parado no segundo
Em que a vida toma cor
Em que o mundo faz sentido
E em que a dor afugentada
Parece por fim debelada

Não saias daí, por favor
Irei ter contigo ao fim de ti
Os dois seremos mais
Numa soma matemática
De valor bem exacto
Eu mais tu dará um.

NÃO PODES

Não podes dizer que não,
Não podes fugir deste embaraço,
Desta força que empurra um contra o outro,
Do calor que dói mas não se vê.

Já não há como escapares,
Desta ilusão tão verdadeira,
Que é um sonho, mas que vive,
De forma ardente e luminosa.

Vem! Diz-me ao ouvido o que sentes,
Ignora o quanto mentes,
Deixa-te levar pelos sentidos,
Deixa-te voar nesta aventura.

Vou levar-te ao paraíso,
Colocar-te num pedestal,
Fazer-te voar nos meus braços.
Até que os corpos se consumam,
Até ficarmos em pedaços.

É HOJE

É hoje!
É hoje que os sinos tocam
É hoje que as feras matam.
É hoje que os vivos saltam
do carrossel da ilusão.

É hoje,
O dia de todos os sentidos
O dia de todas as memórias,
Mesmo as que se perderam
no mundo das perversões.

É hoje,
É hoje, o amanhã.